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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Na quinta comarca [um retrato do Paraná da Lava-Jato]

 Por Maria Cristina Fernandes* no Valor


"O paranaense não existe". Brasil Pinheiro Machado fez esta constatação em 1930, ainda estudante de direito e longe de tornar-se prefeito de Ponta Grossa, interventor no governo do Paraná e jurista. 

Pinheiro Machado referia-se à ausência do Estado nas rebeliões e pactos fundadores da história nacional, como o fizeram São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco, e sem geografia ou cultura que o distinguissem, como Amazonas e Bahia - "Nenhum homem de Estado, nenhum sertanista, nenhum intelectual, nem ao menos um homem de letras", dizia Pinheiro Machado em artigo resgatado pela dissertação de mestrado do historiador Luís Fernando Lopes Pereira ("Paranismo, Cultura e Imaginário no Paraná da I República", na rede). 

O jurista ressentia-se de um Estado a reboque. Até 1853 o Paraná era a quinta comarca de São Paulo. Foi a última província criada no Império. 

Pinheiro Machado não viveria para conhecer Paulo Leminski ou Dalton Trevisan e ver o Paraná se transformar num dos maiores produtores de grãos e automóveis do país. 

Os homens de Estado ainda escasseiam, mas o Paraná, 85 anos depois do artigo de Pinheiro Machado, finalmente entrou no mapa. É lá que o Brasil acontece. 

A Operação Lava-Jato foi montada e desbaratada por paranaenses. Alberto Youssef é de Londrina e Paulo Roberto Costa, de Telêmaco Borba. Sérgio Moro é de Maringá e a maior parte dos procuradores do caso também é do Paraná. Os deputados enrolados - um morto (José Janene) e outro cassado (André Vargas) - são de Santo Inácio e Assaí. 

Essa gente não caiu de paraquedas no Paraná. É difícil precisar um começo, mas talvez seja possível encontrar um marco zero, a tríplice fronteira. No fim do século XIX, a guerra do Paraguai deu a um punhado de famílias de Curitiba o monopólio da erva-mate. Um século depois a economia do Estado também passaria a ser impactada pela instalação da zona de livre comércio em Ciudad del Este. 

Por pressão dos comerciantes brasileiros, o Banco Central abriu a possibilidade de que agências bancárias de Foz do Iguaçu recebessem os reais de lojistas paraguaios e os trocassem por dólares que poderiam ser depositados em contas do exterior. A fronteira já tinha uma ponte, mas foi aí que a amizade realmente aumentou. Com as contas CC5, o Estado tornou-se o paraíso de doleiros que passaram a lavar dinheiro de pequenos e grandes muambeiros, do Paraná e alhures.

A primeira sombra sobre esse paraíso da lavagem apareceu com a investigação sobre a evasão de US$ 124 bilhões do país pelo antigo banco estatal paranaense, o Banestado. A Lava-Jato é um desdobramento mais aperfeiçoado daquela investigação, com bandidos (Alberto Youssef) e mocinhos (Sérgio Moro) em comum. A especialização do Paraná em lavagem de dinheiro fez com que as varas de combate a este crime em Curitiba fossem das mais ativas da justiça federal no país. 

Essa concentração de juízes e procuradores federais especializados nos crimes financeiros mais sofisticados convive com um Estado que se transformou em explosivo laboratório do ajuste fiscal com um Judiciário estadual corporativista e crescentes indicadores de violência. 

As ruas de Curitiba continuam muito limpas para uma cidade de quase 2 milhões de habitantes, mas a capital paranaense, um dia vendida como modelo de civilidade, tem o dobro da taxa de homicídios do Rio. Na última década, os homicídios cresceram mais no Paraná (44%) do que em qualquer Estado do Sul e Sudeste (Mapa da Violência, 2014). 

As atenções da segurança pública do Estado, no entanto, parecem voltadas para as manifestações que há um mês, têm ocupado o centro de Curitiba. O governador Beto Richa (PSDB) recuou do pacote de corte de gastos depois que seus aliados, mesmo escoltados em camburão blindado, foram acossados por manifestantes na Assembleia Legislativa. Sem repasses do governo, as universidades estaduais ameaçam pendurar as contas de água e de luz. 

Na manhã de quarta-feira uma passeata de professores em greve recebeu o apoio dos curitibanos da boca maldita, região do centro da capital famosa pelos aposentados que, reunidos nas praças e cafés, gastam o tempo a falar mal dos inquilinos do poder. Talvez porque os eleitores foram avisados que o Estado estava quebrado só depois da folgada reeleição do governador. 

A passeata margeou o Palácio Avenida, o prédio em L no coração da boca que sediou o Bamerindus, vendido ao HSBC em 1997. Além do coral natalino, o prédio abriga hoje o comando nacional das operações do banco cujas agências na Suíça são refúgio de sonegadores de todo o planeta, entre os quais, segundo a Receita Federal, 342 brasileiros. 

Curitiba tem uma classe média conservadora, com feitos eleitorais lembrados pelo historiador Lopes Pereira como a vitória do integralista Plinio Salgado (1955) e do atual ministro Guilherme Afif Domingos (1989). Está encravada num Estado de imigrantes rurais de arraigado senso de propriedade e com poucos traços do anarquismo europeu do século XIX. 

O mesmo Estado que reajustou as tarifas de energia e aumentou as alíquotas de IPVA e ICMS na tentativa de fechar o rombo nos cofres públicos teve que arcar ainda com as contas do corporativismo de seu judiciário estadual. 

No ano passado, quando a carceragem da Polícia Federal em Curitiba já abrigava Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, o Tribunal de Justiça do Paraná, aprovou o auxílio-moradia para os juízes e procuradores. A regalia, justificaram-se os homens da lei, já é concedida em 14 Estados. 

A difícil situação financeira do Paraná já estava escancarada quando os defensores públicos do Estado obtiveram da Assembleia Legislativa um projeto que aumentou seus vencimentos em 87%. O aumento acabaria suspenso pelo Tribunal de Contas do Estado. A celeuma deixou no ar a impressão de que os paranenses, que ganharam a última defensoria pública a ser criada no país, poderiam continuar a prescindir desses servidores. 

A Lava-Jato é motivo de orgulho num Estado que deu ao PT algumas de suas piores votações da história. A principal alternativa aos petistas também está na berlinda por lá. Se é verdade que a operação está fadada a virar o Brasil ao avesso, os próximos tempos do paranismo podem dar alguma ideia do que está por vir em seu lugar.

*Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor.

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