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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Excesso de tecnologia na medicina prolonga sofrimento e desumaniza morte, diz escritora


Katy Butler, jornalista e ativista norte-americana, comenta como mortes dos pais a fizeram repensar atuação da medicina moderna no fim da vida: "perdemos a distinção entre salvar uma vida e prolongar uma morte"


Ronn Aldaman / Flickr
Jornalista acredita que medicalização da morte prejudica qualidade de vida de pessoas idosas ou portadores de doenças terminais

Em 2001, o pai da jornalista Katy Butler sofreu um derrame, aos 79 anos. Um ano mais tarde, médicos e a família decidiram lhe implantar um marca-passo para manter seu coração funcionando, embora o aparelho não contribuísse com o tratamento de sua crescente demência. Em 2007, a mãe de Butler, exausta pelos cuidados com o marido e angustiada com seu sofrimento, pediu à filha que a ajudasse a desligar o marca-passo. Butler concordou e começou uma pesquisa sobre como a medicina moderna mudou a forma como lidamos com o fim da vida.

Em 2010, ela escreveu sobre a morte de seu pai para a The New York Times Magazine. O artigo acabou se tornando o ponto de partida para seu primeiro livro, "Knocking on Heaven's Door: The Path to a Better Way of Death" ["Batendo na Porta do Céu: o Caminho para uma Forma Melhor de Morrer", em tradução livre]. Além de narrar as experiências de sua família com o lento declínio de seu pai, o livro fala sobre a mãe de Butler, que morreu um ano e meio mais tarde, após se recusar a fazer uma cirurgia cardíaca. "Sua morte foi completamente diferente", diz Butler. "Ela permaneceu lúcida até o fim da vida, e morreu da maneira como escolheu, não uma morte planejada por terceiros".

Butler se tornou defensora do movimento “Slow Medicine” [“Medicina Lenta”, em tradução livre], focado na "tomada de decisões sem pressa, em cuidados paliativos e tratamento em prol do conforto, especialmente no que diz respeito ao fim da vida", de acordo com o grupo no Facebook.

Leia a seguir trechos da entrevista em que Butler comenta questões econômicas, políticas e médicas e as difíceis tarefas emocionais envolvidas na morte de uma pessoa querida.

The Sun Magazine: Como o desenvolvimento da medicina moderna transformou nossa experiência da morte?

Katy Butler: A morte costumava ser uma provação espiritual; hoje, ela é uma batalha tecnológica. Fizemos com que um evento doméstico e religioso, no qual o aspecto mais importante era o estado mental da pessoa prestes a morrer, fosse transferido para hospitais e mecanizado, colocando pacientes, famílias, médicos e enfermeiras à mercê da tecnologia. Ainda assim, queremos que a morte seja uma ocasião sagrada.

E quanto às pessoas que não têm crenças religiosas?

Somos uma sociedade de pessoas que estão à procura de algo. Talvez não gostemos da religião organizada, mas queremos posicionar os eventos da vida em um contexto maior, mais significativo. Queremos que a morte seja mais do que simplesmente o fim da vida de alguém. Obviamente, se estou morrendo, isto é uma grande tragédia para mim. Mas bilhões de pessoas já morreram antes de mim e encararam a morte com graus variados de coragem. Um entendimento disto pode ajudar tanto os que morrem quanto os sobreviventes.

E esta noção do sagrado foi minada pela medicina moderna?

Em meados do século 20, houve uma explosão de invenções do pós-guerra: a diálise, o respirador, o ventilador, o desfibrilador, o marca-passo. Inventamos uma série de dispositivos que tanto preveniam a morte súbita quanto, em alguns casos, literalmente traziam as pessoas de volta à vida. Mas quando eliminamos a morte súbita, também eliminamos a morte natural, e perdemos a distinção entre salvar uma vida e prolongar uma morte.

Mas não é bom que tenhamos acesso a tais tecnologias?

Certamente, quando temos uma chance significativa de sobrevivência. Se você ou eu fossemos atingidos por um carro amanhã, nada poderia ser melhor do que a tecnologia médica. Mas se você tem mais de 80 anos, sofre de demência, diabetes e câncer, não. É uma infelicidade que você tenha acesso a estas tecnologias, que conseguem apenas prolongar sua vida para além do ponto em que ela ofereça qualquer prazer ou sentido.

Quando o processo da morte começou para seus pais?

Meu pai tinha 79 anos quando teve seu derrame, e foi devastador. Meu pai não conseguia sequer apertar seu próprio cinto. Minha mãe tinha que escovar seus dentes, vesti-lo, cortar sua comida – tudo. Embora ela fosse uma ótima cuidadora, isso era emocionalmente desgastante para ela. Meu pai era um professor que adorava conversar, e agora ele quase não conseguia terminar uma frase.

Um ano após o derrame, meu pai desenvolveu hérnia. Por causa de uma arritmia, o cardiologista não liberaria meu pai para a cirurgia de correção de hérnia a menos que ele tivesse um marca-passo. Minha mãe era quem tomava as decisões naquele momento, e ela disse sim. Ela obteve menos informações sobre o dispositivo do que quando comprou um carro novo um ano mais tarde.

O marca-passo impediu o caminho mais suave rumo a uma morte natural. Não podemos dizer exatamente quanto tempo ele teria vivido sem o marca-passo, talvez não tivesse feito diferença alguma, mas o cardiologista e nosso clínico geral estimaram que ele teria morrido dois anos após o derrame. Com o marca-passo, ele viveu mais cinco anos e meio. Estes três anos adicionais foram uma espécie de lento declínio, com a situação sempre se agravando.

Se você não tem demência e ganha uns anos de vida a mais por causa de um marca-passo, isso é ruim?

De forma alguma! É uma questão de usar a tecnologia de maneira adequada. Quando a qualidade de vida é alta, as decisões são outras. Apenas quando a qualidade de vida é baixa e piora cada vez mais é que você deve avaliar se a cura não é pior do que a própria doença.

O que podemos fazer para evitar que a morte seja essa espécie de lento declínio?

Precisamos expandir e financiar os cuidados paliativos, que ajudam doentes terminais a tomar decisões médicas e enfatizam a qualidade de vida, em vez da quantidade de anos vividos. É um trabalho de grupo e fornece mais apoio à família, ajudando no controle da dor e no tratamento de sintomas, e menos baseado no que chamo de cirurgias "Ave Maria", realizadas no fim da vida, quando você só pode mesmo contar com um milagre.

Javi Talleda / Flickr
Butler: 'Tecnologia pode prolongar a vida além do ponto em que ela ofereça qualquer prazer ou sentido'

O que são cuidados paliativos?

Cuidados paliativos são fornecidos a qualquer pessoa com uma doença crônica incurável. Eles se concentram na melhoria da qualidade de vida pelo resto de sua vida, tenha você um ou 50 anos pela frente, independentemente de você ter ou não optado por tratamentos para o prolongamento do tempo de vida.

Os cuidados paliativos fazem a morte chegar mais cedo?

Não, na verdade, eles fazem o contrário. Há um estudo no New England Journal of Medicine que mostra que pessoas que recebem cuidados paliativos vivem tanto quanto ou até mesmo mais tempo do que as que estão recebendo tratamento agressivo. É bastante irônico.

A especialização na medicina é parte do problema? O cirurgião cardiovascular quer consertar o coração; o oncologista quer se livrar do câncer, mas ninguém está pensando no paciente como um todo, não é verdade?

Sim. O cardiologista de meu pai pensava estritamente em corrigir o ritmo cardíaco de seu paciente – não estava levando em consideração nem mesmo o coração como um todo – e certamente não pensava no sofrimento de meu pai e de minha mãe. Não somos átomos isolados no espaço. Somos parte de uma teia de relações da existência, e o "paciente" não é apenas um paciente, mas também representa a família que irá sobreviver após sua morte.

Em que medida os sacrifícios exigidos por uma morte postergada devem pesar nas decisões tomadas pela família?

Isto pode chocar muita gente, porque somos parte de uma cultura individualista, mas eu acho que toda a família deve ser vista como um paciente.

Há algo realmente errado com o sistema que temos hoje, em que o plano de saúde paga por cirurgias avançadas para manter as pessoas vivas, mas não pelos cuidados posteriores necessários. O fardo cai sobre a família. E cuidar de uma pessoa doente frequentemente prejudica a saúde do cuidador. Cuidar de meu pai provavelmente tirou quatro ou cinco anos de vida da minha mãe. Eu acho criminoso ter estendido a vida de meu pai sem levar em conta o sofrimento dela. O que conseguimos se apenas transferimos a doença de um membro da família para outro? Se você é um médico, eu acho que você precisa avaliar se está adicionando sofrimento à família como um todo quando você amplia o tempo de vida de um indivíduo.

Eu fiquei surpreso ao ler, em um recente estudo do Pew Research Center sobre problemas enfrentados por doentes terminais, que menos da metade das pessoas com mais de setenta e cinco anos de idade pensam sobre sua própria morte.

É surpreendente. Acho que isso tem muito a ver com a publicidade e a mídia. Nos comerciais e programas de TV, os idosos estão sempre ótimos. E se não estão se sentindo bem, podem simplesmente tomar um remédio e tudo vai ficar bem, não é mesmo? É fácil ser hipnotizado por essa promessa de uma resolução fácil. Propagandas na TV de várias empresas do setor farmacêutico mostram imagens de pessoas com 75 anos cheias de vitalidade, correndo maratonas. Você nunca vê imagens de decrepitude. A mídia não reflete o fim da vida.

E há culturas que lidam bem com a decrepitude?

Nós lidávamos de maneira muito mais adequada com isto em nossa própria cultura antes do século XX. Naquela época, as pessoas poderiam morrer a qualquer idade de qualquer coisa. Elas de certa forma se preparavam para a morte. Mesmo hoje em dia, a preparação para os dias sagrados no judaísmo envolve o reconhecimento de que a morte pode vir a qualquer momento. Eu acho que o feriado mexicano Día de los Muertos também ajuda – é um dia para que nos lembremos da morte e a celebremos. Muitas culturas honram os idosos muito mais do que nós.

Você escreveu, sobre os cuidados ao fim da vida, que "ninguém está no comando, apenas o mercado". O que isso quer dizer?

Eu quis dizer, por exemplo, que os planos de saúde não pagam os médicos decentemente pelo tempo que se leva para simplesmente dizer "Não é uma boa ideia colocar um marca-passo em seu pai", ou "Outra rodada de quimioterapia não vai trazer qualquer benefício". Mas pagam uma fortuna por medicamentos e dispositivos. Os incentivos financeiros beneficiam as indústrias altamente rentáveis dos dispositivos médicos e medicamentos, que gastam quantidades enormes de dinheiro promovendo seus produtos para médicos e pagando por estudos que sugiram que mais e mais pessoas devem usá-los. O lobby corporativo da indústria da saúde ajuda a determinar o que os médicos devem fazer. Pagamos muito dinheiro aos médicos para que usem a tecnologia, mas muito pouco para que passem mais tempo com os pacientes. Isto condiciona o comportamento deles.

Então, mudar a forma como lidamos com a morte é mais uma questão de política financeira do que espiritual?

Acho que são ambas as coisas. Precisamos restaurar o sagrado no fim de nossas vidas, mas não importa quão preparados estejamos para encarar a morte; até que consigamos mudar estes incentivos financeiros, não acho que a situação vá melhorar. Quando dizemos aos médicos: "Vamos lhe pagar milhares para prescrever quimioterapia cara que você sabe que não irá funcionar, porque já é tarde demais para o paciente, mas vamos pagar apenas cinquenta e quatro dólares para que você converse com ele", estamos lhes mostrando o que realmente valorizamos. Por que foi construído um sistema no qual um médico tem de ser praticamente um santo para fazer a coisa certa?

Há três lobbies poderosos em Washington, capital dos Estados Unidos: defesa, finanças e saúde. E os grandes atores no lobby da saúde obviamente não são médicos da família ou fonoaudiólogos. Eles são, dentre outros, a AdvaMed, que representa fabricantes de dispositivos médicos; as empresas farmacêuticas; e especialistas como cardiologistas intervencionistas, que ganham cerca de meio milhão de dólares por ano. O resultado é que os tratamentos caros de alta tecnologia são excessivamente promovidos.

Um dos motivos pelos quais temos dificuldade em falar disso é que estamos lidando com uma linguagem insuficiente. A morte é uma experiência sagrada, e se você desejar caracterizá-la na linguagem da liberdade individual – "Tenho o direito de fazer o que quiser com meu corpo" – você ignora aquilo por que as pessoas estão passando no final de suas vidas. Elas não querem defender seus direitos individuais. Elas querem ser mantidas no seio de uma comunidade que as ame enquanto passam, junto de suas famílias, pela provação da morte.

Tradução: Henrique Mendes

*Entrevista original publicada no site da The Sun Magazine, revista mensal norte-americana que aborda questões de comportamento e bem-viver.

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