publicado originalmente na Carta Capital, reproduzido no Plantão Brasil
Em 2018, o SUS completa 30 anos. Apesar da falta de recursos, das crises recorrentes, da escassez de profissionais e de problemas de financiamento, o Brasil conseguiu erguer em poucas décadas o maior sistema público de saúde do planeta, feito notável para uma nação que tem dificuldades para desenvolver políticas de longo prazo.
O que seria um motivo de orgulho se tornou mais um ponto de preocupação. O SUS, afirma Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional da Saúde, corre o risco de não passar dos 30 anos, por conta da emenda constitucional que limita os gastos públicos nas próximas duas décadas.
Quais as maiores ameaças ao SUS?
Ronald Ferreira dos Santos: No próximo ano, o SUS completa 30 anos, mas corre sérios riscos de não ir além desse período, em razão da crise política, econômica, social e sanitária que vive o País.
Enxergo dois problemas cruciais. O primeiro, mais geral, o rompimento das regras que estabeleceram a saúde como um direito universal na Constituição de 1988. O segundo, o agravamento do subfinanciamento do sistema.
Não é de hoje que faltam recursos.
Não, não é. O subfinanciamento sempre foi um problema crônico, mas será agravado pela aprovação da Emenda Constitucional nº 95, chamada de Teto de Gastos. Alguns dizem que a medida vai congelar os dispêndios públicos por 20 anos.
Não é exatamente assim. É pior. Trata-se, na verdade, de uma diminuição progressiva dos recursos destinados à saúde. Vai ferir de morte o SUS. Se a medida não for revertida, podemos desistir da ideia de um sistema único.
Qual a perda estimada de recursos com o teto de gastos?
O Brasil investe, atualmente, 3,8% do PIB de dinheiro público na saúde. A atividade econômica do setor, incluídos os gastos privados, varia de 8,5% a 9% do PIB. No decorrer dos 20 anos, o porcentual dos gastos públicos vai cair de 3,8% para menos de 1% do PIB.
Vai piorar uma situação já ruim, pois o Brasil gasta menos em saúde do que a maioria dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, certo?
A maior parte dos países da América Latina, não vou citar aqui a Europa, economias bem menores que a nossa, aplica mais em proporção do PIB do que o Brasil. Estamos na rabeira, em termos de investimentos no setor.
Por que o SUS é tão atacado?
Está em disputa o modelo de atenção. No passado, tratava-se de um debate mais acadêmico entre o sistema universal e a cobertura universal. O Brasil optou, desde a Constituição, pelo sistema universal, que tem por princípio a garantia de direitos.
A lógica da cobertura universal é outra, garantir um pacote mínimo e nada mais. Quem desejar mais serviços precisa procurar na iniciativa privada. Não à toa surgiu a proposta de criação dos chamados planos privados populares e reforçou-se o discurso de que a saúde não cabe no Orçamento.
Por que os planos populares são uma ideia ruim?
Os planos populares traduzem a mudança do modelo de atenção, uma opção à lógica de se estruturar um sistema integrado, que reúna condições para garantir a integralidade, não um pacote de serviços focado nas questões assistenciais de recuperação do paciente.
Esse é o modelo do seguro, da saúde como mercadoria. Definimos o contrário em 1988. E agora se pretende impor, sem voto, sem poder constituinte, sem delegação da população, um sistema completamente diferente.
Qual o balanço do SUS nesses 30 anos?
Desde a Constituição há um claro conflito entre interesses diversos. Neste momento, a correlação de forças na sociedade está absolutamente desproporcional. A defesa do público, de valores como solidariedade e interesse coletivo, nunca esteve tão frágil.
Com todas as dificuldades, o País ergueu em três décadas o maior sistema público de saúde do mundo. E que resolve problemas complexos como o do vírus da Zika em menos de um ano. Identifica, intervém e produz conhecimento.
A maioria das nações levaria décadas para obter resultado semelhante. Conseguimos ter o maior programa de tratamento de Aids do planeta. Somos um dos centros globais de transplante de órgãos. Criamos o Samu, desenvolvemos a assistência farmacêutica.
Apesar do subfinanciamento crônico, há muito a se comemorar. Não nego os gargalos, a falta de profissionais, mas é muito rara a divulgação dos avanços e feitos do SUS. Os meios de comunicação exploram constantemente os problemas, até para estimular o mercado. Os planos de saúde e os seguros privados são grandes financiadores da mídia.
Desmontar o SUS não impedirá o Brasil de criar um poderoso sistema industrial no setor?
Esse complexo industrial foi criado. Um dos aspectos positivos do SUS é exatamente o desenvolvimento da indústria farmacêutica. Somos, hoje, um centro importante de produção de medicamentos, graças às encomendas públicas.
A atividade econômica no setor mobiliza, aproximadamente, 470 bilhões de reais por ano. É mais do que o PIB de Uruguai, Paraguai, Equador… O que o mercado deseja é total liberdade para alimentar suas planilhas. Por isso se ataca, entre outras instituições, a Anvisa.
O Congresso decidiu tirar da Anvisa a regulação dos remédios de emagrecimento. Quem decidirá são os próprios parlamentares. Obviamente, abre-se a porteira para a atuação dos mais diversos lobbies da indústria farmacêutica. O objetivo é esvaziar a capacidade de elaboração de políticas públicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário